ALTO-ALENTEJO |
Ele- Pst!... Pst!... ó Mariazinha!...
(Som forte de «Claksons»)
E lá
vai ela... Não me viu - não há dúvida - por culpa
daquele táxi. Mas não hei-de perdê-la de vista.
Pst! Ó mariazinha! Pare um pouco. por favor. Então que pressa
é essa?! Um momento - para atravessar a rua.
(Forte rodar de carruagem)
Ela- Ora graças que veio, meu caro Fernando! Que faz o menino», aqui, em pleno Chiado, a hora tão matutina?!
Ele-
Que hei-de eu fazer, Mariazinha?...
- Descanso.
Ela- ...Descansa? Não compreendo.
Ele-
Pois é facílimo de compreender. Descanso - porque comecei, hoje
as minhas férias. Por isso me levanto cêdo e passeio.
Sabe-me bem esta liberdade - coisa que não tinha durante o ano lectivo,
em que, à força de querer estudar, fingia que estudava...
Ela- E ... esse fingimento foi bem sucedido?...
Ele-
Se foi!... Mais um ano vencido, na faculdade. Agora, por bons três meses
adeus livros, adeus mestres, adeus aflições!
- E você Mariazinha, também «passou»?...
Ela- «Passei». O direito passa sempre...
Ele- Sim, enquanto a medicina faz por «passar»...
Ela- Mas, a propósito, onde faz você tenção
de passar férias? É preciso aproveitar bem estes meses providênciais...
Ele- Se quer que lhe diga, ainda não sei!
Ela- Não sabe?! Então você, Fernando, não
tem ainda um programa em mente, um itinerário delineado, uma ideia,
ainda que simples a tal respeito?
Ele- Eu?! - Não.
Ela- Bem digo eu: Você é, nas férias o mesmo «cábula» do resto do ano... Pois olhe: - eu parto, amanhã para o Alentejo. Vou ter, lá umas férias deliciosas!
Ele- É espntoso. E eu sempre julguei que você, Mariazinha, fosse uma rapariga de bom gosto... Não percebo.
Ela- Perdão, eu é que não percebo esse comentário de mau-gosto!
Ele- Imagine- que delicioso não vai ser...sol, poeira ,pedras, porcos, bolotas, planície - tristeza
Ela-
Você é que faz tristeza, Fernando.
Que falsa, erradíssima ideia você tem do Alentejo!... Que pena
não ter ficado reprovado no seu exame de instrução primária...
Que pena!... É inacreditável, tamanha ignorância. E você
é um rapaz intelegente, um futuro médico. Não tem desculpa.
Ele- Agradeço o elogio. Mas sempre lhe direi que a Mariazinha, como futura advogada, toma tanto calor pelo Alentejo - que parece até que já lá está! Vamos - não torça a questão.
Ela- Não tôrço... Eu sou pelo Direito.
Ele- ...e pela poesia... ou já a trocou pelo Alentejo?...
Ela- Pelo contrário: irmano-os admirávelmente! O Alentejo é uma fonte imensa da poesia. Para seu castigo - e para lição - vou dizer-lhe, a propósito, alguns tercetos dum poema meu, que tenho de cor.
Ele- Que memória!... Diga, Mariazinha.
Ela- Vai ver como modifica a sua opinião...injusta!
Ele- Talvez. Mas vamos andando... Vá dizendo...
(Fundo:- «Sonata ao Luar», de Beethoven, em piano)
...Alentejo-
Moldura em que se encerra
o retrato mais belo da beleza,
esmeraldino quadro a que se aferra
o vidro
das geadas, e pureza
e o cristal dos orvalho e das neves...
Ó coração da Terra Portuguesa:
Quem não
te viu senão com olhos breves
ou quem te não viu nunca, quem te chama
plaino imenso de rudes almocreves;
Quem afirma
que és rocha e pó e lama,
não sabe quanto é bela a tua mágua,
não entende a ventura do teu drama.
Que és
um deserto enorme, ou longa frágua,
terra nua ou império matagal
aonde abunda a lande e falta a água!...
Ó
ignorância estulta, ó voz brutal
de tantos irmãos nossos - portugueses
que ainda não conhecem Portugal!
Ele- Bravo! Muitíssimo bem.
Ela- Entusiasmou-se não é verdade?...
Ele- Sim. Alguma coisa. Quero dizer: -pelo valor dos versos...
Ela- ... Que exalta o valor do Alentejo!
Ele- Sem dúvida. Mas diga-me: - Para que ponto do Alentejo vai você passar as suas férias?...
Ela-
Distrito de Portalegre. Ou seja, Alto Alentejo. Tenho um magnífico
triângulo de turismo à escolha:
Portalegre, Marvão ou Castelo de Vide... Depois visitarei Campo Maior,
Elvas Alter do Chão, Gavião, Arronches, Aviz, Fronteira, Ponte
de sor, Sousel - enfim, todas as maravilhas que nos oferece essa encatadora
região, que sob o ponto de vista etnológico, e mesmo orográfico,
é a continuação das beiras...
Ele- Agora me lembro. É isso mesmo!
Ela-
Então, deve recordar-se de que a Serra de S. Mamede está a uma
altitude média de 480 metros... E que na encosta de um dos contrafortes,
está edificada a vetusta Amáya, a cidade de Portalegre, capital
do distrito do mesmo nome a 8 léguas da fronteira castelhana. Então,
deve recordar-se de que esse velho burgo é cidade desde 1550, quando
reinava D. João III.
Então deve recordar-se do seu Castelo, mandado edificar por D. Diniz,
em 1290, e da sua magnífica Sé Catedral, fundada por D. Julião
de Alva, em 1556. Deve então recordar-se de que são seus filhos
ilustres, nas armas, Jorge de Avilez, Gonçalves Zarco, Souza Tavares
e outros; e, nas suas letras, Cristovão Falcão, Filipe Folque,
José Maria Grande, José Duro, o poeta do «Frei»,
e outros mais. Deve, então, recordar-se , pelo que leu - já
que não viu - da simplicidade tocante da gente do Alto-Alentejo: -Pastoras,
ceifeiras, idílios, romarias, cantares...
(Disco: - Canção Alentejana, preferível com coro).
Ele- Decididamente, Mariazinha, você, vai-me convencendo... Estou quasi Alentejano!
Ela- Não énecessário tanto. Não exagere. Basta ser-se bom Português - para amar o Alentejo. Esta grande e bela e tipica provincia de Portugal, com os seus 29 mil quilómetros quadrados - precisamente a superficíe da Bélgica- ainda não foi bem descoberta pelos portugueses...
Ele- Compreendo e avalio a ironia...
Ela- É para que saiba.
Ele- E sei. Você inspirou-me, e convenceu-me. Eu também, às vezes, sou um tanto ou quanto poeta... Vou fazer um soneto ao Alentejo. Já tenho as duas quadras. Oiça:
(Fundo:- «Sonho de amor», de Liszt, em violino)
Foi um soneto
de Florbela Espanca
que eu revi a beleza do Alentejo,
-Planície e Vale e Serrania e Brejo:
um corpo verde e uma alma branca...
Branca de
sonho, alma tranquila e franca;
verde de esperança, corpo do desejo...
- Pintaram, inspirados, o Alentejo
catorze versos de Florbela Espanca.
Ela- Exactíssimamente! Dou-lhe os parabéns.
Ele- E eu felicito-a, por ter modificado o meu parecer acêrca do Alentejo. Confesso que fui injusto, não por ignorância nem maldade... Mas por...
Ela- ...esquecimento...
Ele- Adivinhou. Você Mariazinha, é uma adorável companheira...
Ela- ...de viagem...
Ele- Lembrou bem. Conte comigo! Já sei onde passar as minhas férias. Sinto-me já Alentejano - à sombra dos sobreiros, machôcos ou chaparros, a ver os rebanhos com os seus campanilhos e beiroas, reboleiros e picadeiras... E deve ser delicioso saudar as senhoras lavradoras, ir às tibornas e trincar o bôlo-finto!
Ela- E ver galmões e os barbotes nos sobreirais. E ver as moçoilas empapailadas, mais os mocetões todos rabitesos!
Ele- Então...
Ela- Então, até amanhã.
Ele- De manhã...
Ela- De manhã.
Ele- No mesmo combóio...
Ela- No mesmíssimo combóio.
Ele- O mesmo compartimento. A mesma janela:
Ela- E que mais?...
Ele- «Vis-à-vis».
Ela- Seja «Vis-à-vis». Mas não seria melhor lado a lado?...
Ele- Não isso fica para a Sé Catedral de que me falou... Lado a lado, ajoelhados... Um lindo epílogo.
Ela- Que quer dizer?!...
Ele- Ora! Ora! Quer que lhe diga por música?...
(Disco: Marcha Nupcial de Mendelson, aumentando gradualmente de intensidade).
FIM