ALTO-ALENTEJO
Arranjo Radiofónico de Armando Neves
Transmitido ao microfone do Clube Radiofónico de Portugal em 6 de Agosto de 1942
A planificação inicia-se com a parte de um disco, que dê bem a impressão sonora de uma cena de rua: «claksons», pregões, sinos, rodar de carruagens, etc. Movimento citadino, às primeiras horas da manhã. Duração suficientes de sons.

 

Ele- Pst!... Pst!... ó Mariazinha!...

(Som forte de «Claksons»)

E lá vai ela... Não me viu - não há dúvida - por culpa daquele táxi. Mas não hei-de perdê-la de vista.
Pst! Ó mariazinha! Pare um pouco. por favor. Então que pressa é essa?! Um momento - para atravessar a rua.

(Forte rodar de carruagem)

Ela- Ora graças que veio, meu caro Fernando! Que faz o menino», aqui, em pleno Chiado, a hora tão matutina?!

Ele- Que hei-de eu fazer, Mariazinha?...
- Descanso.

Ela- ...Descansa? Não compreendo.

Ele- Pois é facílimo de compreender. Descanso - porque comecei, hoje as minhas férias. Por isso me levanto cêdo e passeio.
Sabe-me bem esta liberdade - coisa que não tinha durante o ano lectivo, em que, à força de querer estudar, fingia que estudava...

Ela- E ... esse fingimento foi bem sucedido?...

Ele- Se foi!... Mais um ano vencido, na faculdade. Agora, por bons três meses adeus livros, adeus mestres, adeus aflições!
- E você Mariazinha, também «passou»?...

Ela- «Passei». O direito passa sempre...

Ele- Sim, enquanto a medicina faz por «passar»...


Ela- Mas, a propósito, onde faz você tenção de passar férias? É preciso aproveitar bem estes meses providênciais...


Ele- Se quer que lhe diga, ainda não sei!


Ela- Não sabe?! Então você, Fernando, não tem ainda um programa em mente, um itinerário delineado, uma ideia, ainda que simples a tal respeito?

Ele- Eu?! - Não.

Ela- Bem digo eu: Você é, nas férias o mesmo «cábula» do resto do ano... Pois olhe: - eu parto, amanhã para o Alentejo. Vou ter, lá umas férias deliciosas!

Ele- É espntoso. E eu sempre julguei que você, Mariazinha, fosse uma rapariga de bom gosto... Não percebo.

Ela- Perdão, eu é que não percebo esse comentário de mau-gosto!

Ele- Imagine- que delicioso não vai ser...sol, poeira ,pedras, porcos, bolotas, planície - tristeza

Ela- Você é que faz tristeza, Fernando.
Que falsa, erradíssima ideia você tem do Alentejo!... Que pena não ter ficado reprovado no seu exame de instrução primária...
Que pena!... É inacreditável, tamanha ignorância. E você é um rapaz intelegente, um futuro médico. Não tem desculpa.

Ele- Agradeço o elogio. Mas sempre lhe direi que a Mariazinha, como futura advogada, toma tanto calor pelo Alentejo - que parece até que já lá está! Vamos - não torça a questão.

Ela- Não tôrço... Eu sou pelo Direito.

Ele- ...e pela poesia... ou já a trocou pelo Alentejo?...

Ela- Pelo contrário: irmano-os admirávelmente! O Alentejo é uma fonte imensa da poesia. Para seu castigo - e para lição - vou dizer-lhe, a propósito, alguns tercetos dum poema meu, que tenho de cor.

Ele- Que memória!... Diga, Mariazinha.

Ela- Vai ver como modifica a sua opinião...injusta!

Ele- Talvez. Mas vamos andando... Vá dizendo...

(Fundo:- «Sonata ao Luar», de Beethoven, em piano)

...Alentejo- Moldura em que se encerra
o retrato mais belo da beleza,
esmeraldino quadro a que se aferra

o vidro das geadas, e pureza
e o cristal dos orvalho e das neves...
Ó coração da Terra Portuguesa:

Quem não te viu senão com olhos breves
ou quem te não viu nunca, quem te chama
plaino imenso de rudes almocreves;

Quem afirma que és rocha e pó e lama,
não sabe quanto é bela a tua mágua,
não entende a ventura do teu drama.

Que és um deserto enorme, ou longa frágua,
terra nua ou império matagal
aonde abunda a lande e falta a água!...

Ó ignorância estulta, ó voz brutal
de tantos irmãos nossos - portugueses
que ainda não conhecem Portugal!

Ele- Bravo! Muitíssimo bem.

Ela- Entusiasmou-se não é verdade?...

Ele- Sim. Alguma coisa. Quero dizer: -pelo valor dos versos...

Ela- ... Que exalta o valor do Alentejo!

Ele- Sem dúvida. Mas diga-me: - Para que ponto do Alentejo vai você passar as suas férias?...

Ela- Distrito de Portalegre. Ou seja, Alto Alentejo. Tenho um magnífico triângulo de turismo à escolha:
Portalegre, Marvão ou Castelo de Vide... Depois visitarei Campo Maior, Elvas Alter do Chão, Gavião, Arronches, Aviz, Fronteira, Ponte de sor, Sousel - enfim, todas as maravilhas que nos oferece essa encatadora região, que sob o ponto de vista etnológico, e mesmo orográfico, é a continuação das beiras...

Ele- Agora me lembro. É isso mesmo!

Ela- Então, deve recordar-se de que a Serra de S. Mamede está a uma altitude média de 480 metros... E que na encosta de um dos contrafortes, está edificada a vetusta Amáya, a cidade de Portalegre, capital do distrito do mesmo nome a 8 léguas da fronteira castelhana. Então, deve recordar-se de que esse velho burgo é cidade desde 1550, quando reinava D. João III.
Então deve recordar-se do seu Castelo, mandado edificar por D. Diniz, em 1290, e da sua magnífica Sé Catedral, fundada por D. Julião de Alva, em 1556. Deve então recordar-se de que são seus filhos ilustres, nas armas, Jorge de Avilez, Gonçalves Zarco, Souza Tavares e outros; e, nas suas letras, Cristovão Falcão, Filipe Folque, José Maria Grande, José Duro, o poeta do «Frei», e outros mais. Deve, então, recordar-se , pelo que leu - já que não viu - da simplicidade tocante da gente do Alto-Alentejo: -Pastoras, ceifeiras, idílios, romarias, cantares...

(Disco: - Canção Alentejana, preferível com coro).

Ele- Decididamente, Mariazinha, você, vai-me convencendo... Estou quasi Alentejano!

Ela- Não énecessário tanto. Não exagere. Basta ser-se bom Português - para amar o Alentejo. Esta grande e bela e tipica provincia de Portugal, com os seus 29 mil quilómetros quadrados - precisamente a superficíe da Bélgica- ainda não foi bem descoberta pelos portugueses...

Ele- Compreendo e avalio a ironia...

Ela- É para que saiba.

Ele- E sei. Você inspirou-me, e convenceu-me. Eu também, às vezes, sou um tanto ou quanto poeta... Vou fazer um soneto ao Alentejo. Já tenho as duas quadras. Oiça:

(Fundo:- «Sonho de amor», de Liszt, em violino)

Foi um soneto de Florbela Espanca
que eu revi a beleza do Alentejo,
-Planície e Vale e Serrania e Brejo:
um corpo verde e uma alma branca...

Branca de sonho, alma tranquila e franca;
verde de esperança, corpo do desejo...
- Pintaram, inspirados, o Alentejo
catorze versos de Florbela Espanca.

Ela- Exactíssimamente! Dou-lhe os parabéns.

Ele- E eu felicito-a, por ter modificado o meu parecer acêrca do Alentejo. Confesso que fui injusto, não por ignorância nem maldade... Mas por...

Ela- ...esquecimento...

Ele- Adivinhou. Você Mariazinha, é uma adorável companheira...

Ela- ...de viagem...

Ele- Lembrou bem. Conte comigo! Já sei onde passar as minhas férias. Sinto-me já Alentejano - à sombra dos sobreiros, machôcos ou chaparros, a ver os rebanhos com os seus campanilhos e beiroas, reboleiros e picadeiras... E deve ser delicioso saudar as senhoras lavradoras, ir às tibornas e trincar o bôlo-finto!

Ela- E ver galmões e os barbotes nos sobreirais. E ver as moçoilas empapailadas, mais os mocetões todos rabitesos!

Ele- Então...

Ela- Então, até amanhã.

Ele- De manhã...

Ela- De manhã.

Ele- No mesmo combóio...

Ela- No mesmíssimo combóio.

Ele- O mesmo compartimento. A mesma janela:

Ela- E que mais?...

Ele- «Vis-à-vis».

Ela- Seja «Vis-à-vis». Mas não seria melhor lado a lado?...

Ele- Não isso fica para a Sé Catedral de que me falou... Lado a lado, ajoelhados... Um lindo epílogo.

Ela- Que quer dizer?!...

Ele- Ora! Ora! Quer que lhe diga por música?...

(Disco: Marcha Nupcial de Mendelson, aumentando gradualmente de intensidade).

FIM